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Razão de Te Amar (Romance)

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Publicada pela Mafra Editions, uma editora com sede na cidade de Joinville/Santa Catarina, a obra 'Razão de Te Amar' já emocionou milhares de leitores nas plataformas digitais. Rosa Maria e sua família estão passando por momentos complicados, quase desumanos, em seu país de origem, devastado por uma grave crise político-econômica, que culminou na deterioração econômica e social de toda a nação. Em meio à uma inflação descontrolada e o total despreparo do chefe de Estado para comandar o país, o destino das pessoas é alterado quase que instantaneamente, a fome se alastra de forma alarmante, o caos é instaurado nas ruas e diversas manifestações colocam o país em meio a uma guerra civil.Entretanto, há esperança para Rosa Maria: por conta de um amigo em comum, sua família consegue arranjar uma viagem para os Estados Unidos, onde pretendem buscar uma nova vida, mais digna, completamente à parte dos horrores pelos quais estavam passando. A estadia provisória tinha o intuito de se transformar em estadia permanente, caso o destino ajudasse a família, mas a incerteza da deportação se tornaria um medo constante.Em meio à tentativa de sobrevivência em um novo país, Rosa Maria guarda lembranças de seu primeiro amor, um rapaz com quem conviveu durante os períodos difíceis em seu país. O que ela não imagina é que se apaixonará novamente, e essa paixão acontecerá de forma inesperada. Mais do que isso, o que ela também não imagina é que terá que enfrentar dificuldades, sonhos e preconceitos para levar sua vida adiante. Como se não fosse o bastante, outros amores cruzarão a vida de Rosa Maria, outros obstáculos influenciarão seus sentimentos, deixando seu novo mundo, agora recém-conquistado, de cabeças para o ar.Se sentimento e razão muitas vezes são tratados como opostos, é possível que Rosa Maria encontre razão para o amor que sente, especialmente em meio ao turbilhão de sentimentos pelos quais passará, convivendo com medos, decepções e incertezas?


PÁTRIA


Naquela manhã, acordei com fortes dores no estômago. Eu havia desenvolvido gastrite crônica por conta de passar muitas horas seguidas sem comer ou mesmo dias sem me alimentar direito. A comida era escassa em um país devastado pela pobreza, crise econômica e corrupção. Ao me olhar no espelho, pude me notar pela primeira vez alguns quilos mais magra.


Mas a dor não me deixou permanecer de pé, então me deitei novamente. Somente horas depois de me contorcer na cama levantei-me mais uma vez e abri as cortinas para que a luz do sol entrasse. No entanto, ao olhar através da janela do meu quarto, no terceiro andar do prédio onde eu morava, meu coração ainda teve forças pra bater mais forte de susto, de desespero. Meu corpo tremeu e em poucos instantes meus olhos já vertiam as lágrimas de desesperança, de angústia. Era a ânsia pelo fim de um pesadelo.


Através da janela eu observei a realidade cruel do mundo: pude ver meus vizinhos, no quintal de uma casa velha, com a pintura descascada pelo tempo, dilacerando um cachorro para o cozinharem em uma fogueira improvisada recém-acesa. Não havia nem mesmo gás de cozinha para preparar os alimentos de um modo decente, digno. Mal havia alimento. É isso mesmo que eu acabei de afirmar: os mais pobres, para não morrerem de fome, passaram a comer a carne dos cachorros vira-latas que vagavam pelas ruas, e sinceramente não duvido que muitas pessoas tenham comido seus animais de estimação. Lamentável, triste, assustador! Comer carne de gato e de ratos também fazia parte da busca desesperada pela sobrevivência naquele país demolido pelo algoz de uma política populista e totalitária.


Jamais duvide do poder destruidor de uma ideologia nas mãos corruptas do ser humano, e neste caso eu falo do socialismo bolivariano, tido inicialmente como uma forma de organização política e econômica que, na verdade, foi parte de um culto ao ego fomentado por fins políticos, fins esses que nada têm a ver com as ideias originais de seu fundador. É quase sempre assim: os governantes se apropriam de uma ideologia e a adaptam aos seus propósitos tiranos, às suas ganas pelo poder, opressão e dinheiro. Tudo isso somado à instabilidade do governo, da economia e às sanções e embargos econômicos impostos à minha pátria por parte de governos estrangeiros, tornou meu país um caos de pobreza, fome, morte e revolta.


A náusea insuportável invadiu meu corpo, senti vontade de vomitar depois de ver aquela cena que era o retrato da miséria. Me joguei na cama de novo, encharquei o travesseiro com o choro aflito de quem não aguentava mais tanta injustiça. Independentemente de quem fosse a culpa, fato era que o meu povo estava passando fome, quase não havia comida nas prateleiras dos mercados, a moeda do meu país não valia mais nada. Era preciso o salário de um mês inteiro pra comprar um litro de leite ou um quilo de carne bovina, e isso caso encontrássemos um lugar onde esse produto estivesse disponível. As filas nos açougues pra comprar carne podre eram enormes, afinal comer carne podre é melhor do que morrer de fome.


A sorte da minha família era que, por ter alguns contatos importantes, meu pai ainda conseguia um pouco de comida com amigos comerciantes e fornecedores estrangeiros, o suficiente para não precisarmos comer ratos ou coisas do tipo, mas nada de carnes nem qualquer comida especial, apenas vegetais, como frutas e legumes; às vezes leite, quando muito.


Na realidade, as coisas nem sempre foram assim tão difíceis. Antes de todo o caos se instalar em meu país, nós tínhamos uma vida boa, uma vida digna. Meu pai era um empresário da área de jardinagem e paisagismo, de classe média alta, e minha mãe, uma dedicada dona de casa. Tínhamos carro, casa própria, lucro, até negociações com clientes estrangeiros!


Mas a vida na América do Sul tornou-se um verdadeiro pesadelo quando a gana pelo poder fez com que nosso antigo presidente decidisse redistribuir a riqueza da nação para os mais pobres. É sempre assim: os políticos juram que tudo o que fazem é para o bem do povo, mas, no fim, quase tudo que fazem é para o bem de si próprios. Eles não se importavam se o povo morreria de inanição.


E não era apenas a fome que nos afligia, a censura também. Todos os meios de comunicação que fizessem qualquer manifestação contrária ao governo eram interditados ou mesmo confiscados pelo Estado.


Naquele momento, quase todas as economias que meu pai havia juntado em dólares nos bons tempos foram usadas para comprar nossas passagens aéreas para os Estados Unidos. Iríamos como visitantes para nunca mais voltar. Um velho amigo, seu nome era David Jenkins, ex-empresário e professor universitário, nos receberia como anfitrião em Ocean City, no estado de Maryland. Nos tempos antigos, ainda quando eu era criança, meus pais e eu já havíamos visitado a América do Norte. Meu pai, Santiago Rodríguez, chegou a ir mais vezes pra lá quando ainda era um empresário bem-sucedido, antes de perder tudo. A ajuda de amigos comerciantes em nosso país fez com que meu pai ainda mantivesse o status de empresário e vínculo com a nossa nação até aquele momento, mesmo estando de fato falido.


Mas não permaneceríamos em Ocean City por muito tempo. O auxílio do David era só para a chegada; ficaríamos apenas alguns dias em sua casa, até que ele conseguisse com seus amigos latinos da Califórnia trabalho e casa para a minha família. Assim que chegássemos aos Estados Unidos, tudo seria decidido. As pessoas em geral tinham medo de se envolver demais nessa situação. Nosso plano era partir o quanto antes de Ocean City para a Califórnia a fim de trabalhar e começar uma nova vida. Não queríamos comprometer o destino de um amigo com nossa futura situação de imigrantes sem status.


Foi nossa sorte ter a amizade do David. Aquela era a nossa única chance, seria um verdadeiro milagre. Havia sim o risco de não passarmos pela polícia de imigração quando chegássemos à América do Norte. Éramos turistas estrangeiros vindos de um país em crise, onde grande parte da população sofria com a fome, onde muitos estavam comendo carne de cachorro para sobreviver. As autoridades norteamericanas poderiam muito bem desconfiar que estivéssemos na verdade fugindo, nos refugiando. Mas o risco valeria a pena, isso era o que meu pai dizia. “Se temos que ir embora, iremos para o melhor lugar”, ele afirmava.


***


Já era fim da tarde quando meu pai entrou pela porta da sala carregando duas sacolas na mão. Já não comíamos há pouco mais de vinte e quatro horas. Eu e minha mãe, Doralis, permanecíamos sentadas no sofá, eu com minha cabeça recostada em seu colo e ela clamando a Deus que nos poupasse de morrer de fome ou doentes até que chegasse o dia de fugir.


— Rosa Maria, minha filha. Doralis, meu amor – meu pai chamou pelo meu nome e de minha mãe depois de colocar as sacolas sobre a mesa.


— Pai, meu estômago dói, me sinto muito mal – eu murmurei.


— Sei que estão famintas. Consegui frutas, verduras, legumes e leite. As filas para comprar comida continuam atravessando os quarteirões. Eu vou servi-las. Precisam comer frutas e tomar leite – ele disse, enquanto tirava as coisas da sacola. Pegou os copos e os pratos.


— Obrigada, pai. Sei que não está sendo fácil conseguir alimento por um preço que podemos pagar, sei que precisamos economizar os poucos dólares que ainda restam para a viagem, afinal é tudo que temos. Mal posso esperar pelo dia do embarque. Quero estar longe desse inferno – eu disse com voz fraca. A dor da fome e da gastrite arrebentava meu estômago naquele instante.


— Não há futuro para nós aqui na América do Sul, Rosa Maria – meu pai afirmou, suspirando.


— Nosso povo está sucumbindo, Santiago – minha mãe comentou, olhando fixamente para o copo de leite.


— Hoje cedo eu vi pela janela os vizinhos dilacerando um cachorro para o comerem. Foi uma cena horrível – eu relatei, desabando em lágrimas.


— Isso é horrível. O que acontece nesse país é um crime contra a humanidade. Há crianças morrendo de fome no colo de suas mães prostradas nas calçadas. Não há medicamentos nos hospitais, está tudo desmoronando sobre nossas cabeças. Nós temos que ir embora daqui para sempre, minha filha. – Meu pai me consolava. Ele era o meu herói. Nos serviu as frutas e o leite, e em seguida comeu conosco. – Só precisamos de um pouco mais de paciência. O dia da nossa partida está próximo – ele afirmou, depois de tomar mais um gole de leite.


***


Naquele momento tudo já era escasso e racionado: papel higiênico, remédio, energia elétrica e água. Os saques eram constantes nos poucos supermercados abastecidos para atender só os ricos, que podiam pagar pela fortuna que custava os produtos mais básicos. As mortes eram inevitáveis. O caos parecia ser irreversível. Pessoas famintas e desesperadas já invadiam os condomínios e casas em busca de algo para comer. Eram cenas de horror.


Aquele regime que teoricamente pregava a igualdade social era na verdade um livro apócrifo do apocalipse. Naqueles últimos meses o surto de doenças como sarna, diarreia, malária e disenteria foi intenso. Um povo sem água e sem alimento não pode sobreviver. Não havia como enterrar os mortos com decência; como os caixões custavam muito caro, as pessoas enterravam seus mortos no quintal de casa.


Nem é preciso dizer que naquela situação não havia espaço para paixões, mas mesmo assim eu amei alguém pela primeira vez. O nome dele era Endry, e é impossível esquecer tudo o que vivemos juntos.


O COMEÇO DO AMOR


Eu conheci o Endry durante o primeiro ano da faculdade de engenharia elétrica, dois anos antes da minha partida para os Estados Unidos. Naquela época eram poucos os jovens que, em meio à crise e miséria que o país enfrentava, tinham condições e coragem de frequentar a universidade. A busca pela fuga daquela situação era o grande objetivo da maioria da população.


A universidade estadual localizada na capital do país se encontrava em péssimas condições, os computadores eram muito antigos, não havia mais manutenção das instalações físicas e elétricas, paredes descascadas, telhados caindo, salas abandonadas, salários dos professores reduzidos em mais de cinquenta por cento. Essa era a realidade que eu havia presenciado logo naqueles primeiros dias de aula. Eu morava perto da universidade, pegava o primeiro ônibus todas as manhãs.


Eu tinha apenas dezessete anos e já havia dentro de mim a esperança de ser alguém na vida, algum dia, em algum lugar. Em meio à toda aquela escuridão, enfim eu pude ver a luz do amor brilhar pela primeira vez dentro do meu coração.


Depois de muito tempo de tempestade e falta de motivos para seguir em frente, um jovem com o sorriso que acalentou minha alma entrou pela porta da sala de aula. Aconteceu uma semana depois do início do ano letivo. Meu encantamento foi imediato. Como se fosse mágica, ele me notou, e senti até arrepio. Não sei se há alguma explicação para sentirmos empatia por alguém quando a vemos de imediato.


Certo dia Endry sentou-se perto de mim. Eu nunca me esqueço daquela semana difícil. Eu chegava à aula com o estômago vazio quase todas as manhãs, ainda sonhando em ser alguém, mesmo sem vislumbrar uma luz no fim daquele túnel obscuro. Mas enxergar o rosto daquele rapaz todos os dias era a verdadeira recompensa.


Sempre que sobravam alguns centavos, meu pobre pai os dava a mim, para que eu pudesse comprar pão com geleia e chá (era o que havia) na cantina da universidade durante o intervalo das aulas. Naquela ocasião, depois de aguardar na fila da cantina, peguei meu lanche e, como se estivesse distraída, esbarrei no Endry. Não teve jeito: meu copo de chá virou no colo dele, que ficou com a camisa manchada.


— Oh! Me desculpe. Agora já era. Fiquei sem chá e dinheiro, e não tenho mais dinheiro hoje pra comprar outro copinho – eu disse, mais preocupada por ter perdido meu café da manhã do que com a roupa dele que eu havia acabado de sujar.


— Rosa Maria, não se preocupe. Não foi nada. Eu divido meu copo de chá com você – ele respondeu com delicadeza. Meu coração acelerou ao ouvi-lo chamar meu nome.


— Endry, como eu sou indelicada. Sua camisa está toda suja de chá. Me desculpe.


— Já disse que não foi nada. Depois eu lavo no banheiro, ou deixo pra lavar em casa. – Ele me livrou da culpa mais uma vez.


— Eu agradeço, mas o copo de chá é seu e não seria justo que ficasse para mim. Eu como só o pão com geleia mesmo. Não é como as geleias de antigamente, mas é o que temos.


— Não seja por isso. Podemos dividir nosso lanche. Gostaria de ir comigo à mesa do pátio para partilhamos o pão com geleia e o chá?


— Seria muito legal. Vamos – eu respondi, sorrindo.


***


Endry e eu nos sentamos à mesa do pátio e começamos a conversar entre os goles de chá e mordidas no pão.


A partir daquele momento passamos a conversar todos os dias, Endry sempre se sentava ao meu lado durante as aulas. Naquele momento nós nem sequer imaginávamos que a realidade iria culminar na população comendo carne de cachorro e de rato pra não morrer de fome.


***


Guardo a lembrança do nosso primeiro passeio de moto pela cidade. Matamos aula naquela manhã ensolarada de outono para passear. Endry, assim que me viu entrar pelos portões da universidade, me pegou pelas mãos e disse:


— Rosa Maria, vem comigo, vamos passear hoje.


— Mas Endry, e a aula? –me mostrei preocupada.


— Aula tem todo dia, mas esse passeio só posso te dar hoje. Consegui uma moto emprestada – ele me explicou.


— Jura? – eu perguntei, surpresa.


— Sim. – Ele sorriu.


— Então vamos – concordei, já ansiosa.


— Vou te levar a um lugar sensacional. Não sei se já esteve lá, mas dessa vez será especial – ele me disse com entusiasmo.


Meu coração bateu mais forte de nervosismo ao ouvir as palavras do Endry. Na hora, ansiei por saber o que haveria de especial no lugar pra onde ele estava me levando. Subi na moto e segurei firme na cintura do rapaz que me fazia esquecer por um momento as mazelas que sobrevinham às nossas vidas.


***


Percorremos mais de trinta minutos pela rodovia principal da cidade, até que chegamos a um local ermo. A entrada era uma estrada de terra de difícil acesso com qualquer outro veículo que não fosse uma moto. No fim daquela estrada de terra havia uma paisagem linda que parecia ser distante do local de misérias onde vivíamos. Era um tipo de reserva ecológica longe do centro urbano. Eu nunca havia estado ali. Embora fosse minha cidade natal, havia cantinhos dela que eu não imaginava que existiam.


Endry parou a moto e descemos.


— Chegamos. Rosa Maria, seja bem-vinda à Gruta do Oeste, um lugar que poucos se preocupam em conhecer. Vai começar a aventura – ele me disse, mostrando-me o local.


— Percebo que o lugar é lindo, mas é seguro?


— Ao meu lado você sempre estará segura. Vamos.


***


Endry segurou minha mão e caminhamos por uma trilha. Em dado momento ele pediu que eu fechasse os olhos e continuou me conduzindo ao fim do caminho.


— Agora pode abrir os olhos – ele me disse, empolgado.


Meus olhos se encheram de lágrimas ao vislumbrarem a cachoeira com uma linda queda d’água.


— Endry, é lindo esse lugar! E também o barulho da queda d’água! – eu disse, respirando fundo em seguida. Pude sentir a paz por uns instantes.


— Fico feliz que tenha gostado. – Ele sorriu.


— Aqui é tão tranquilo, parece até que o mundo está em paz – eu disse, fascinada com a paisagem.


— Nesse lugar ele está em paz. Mas eu te trouxe aqui por um motivo especial. – Endry fez mistério.


— Que motivo mais especial poderia existir além desse? Endry, obrigada por me fazer esquecer por uns instantes todos os momentos ruins que estamos passando. Não está sendo fácil lá fora. Meu pai perdeu tudo, estamos completamente falidos. Já começa a faltar comida, mas a dor de fome no meu estômago até passa quando você está perto – eu confessei, em tom de voz delicado.


— Faço isso porque durante esses meses em que ficamos amigos eu descobri algo muito importante – Endry começou a se explicar.


— Descobriu? O quê? – Me mostrei curiosa.


— Rosa Maria, eu sou um homem apaixonado por você. Por isso eu te trouxe aqui. Quer ser minha namorada? – Ele fez o pedido com o sorriso mais lindo do mundo.


Naquela hora meu coração bateu mais forte, mais uma vez. O Endry era um ano mais velho que eu e certamente havia tido outras namoradas, ao contrário de mim, que estava vivendo o meu primeiro amor, pois paixões não correspondidas de adolescência não contam.


Fiquei nervosa. Ele continuou segurando minha mão, eu permaneci olhando sua face reluzente de carinho. Tudo que eu ouvia era o barulho das águas da cachoeira.


O medo do futuro quase me fez hesitar na resposta. “E se nada der certo?”, eu me perguntei. Mas ao mesmo tempo seria crueldade deixar de viver aquela paixão por falta de esperança no futuro. Tão jovem e tão racional era o meu coração já sensibilizado pelas tragédias. Pensei por mais alguns instantes e a emoção tomou conta de mim, fazendo com que minha decisão não pudesse ser outra.


— Endry, eu também sou muito apaixonada por você. Eu aceito sim ser sua namorada. – Eu aceitei, já confessando o que sempre havia sentido desde os primeiros dias de aula. Então sorri.


— Você não imagina o quanto ouvir isso me deixa feliz. Eu trouxe isso pra você. — Ele estendeu as mãos, me entregando o presente.


— É uma linda correntinha, e tão delicada – eu disse, surpresa.


— Eu coloco em seu pescoço. – Ele se mostrou gentil.


— Obrigada.


Endry colocou o colarzinho em meu pescoço e disse:


— Agora vamos tirar uma foto juntos nesse lugar que será sempre nosso. É a nossa primeira selfie de namorados.


— Ah! Esqueci meu smartphone em casa – eu me lembrei.


— Não tem problema. Eu trouxe meu smartphone pra fazer nossa foto.


— Depois me envia por email. Eu quero imprimir a foto e colocar no espelho do meu quarto – eu pedi.


— Tudo bem, eu envio. Agora fica com o seu rosto bem juntinho do meu pra fazermos nossa foto mais importante – ele disse, colando o rosto dele no meu.


— Tudo bem. De fundo vai aparecer a cachoeira – eu comentei, empolgada.


Essa foto eu tenho até hoje. Depois dos cliques, nos abraçamos. Fiquei um pouco trêmula, sim, meu corpo tremeu todo. O Endry queria muito me beijar e eu também, mas eu nunca tinha feito aquilo, então considerei natural minha insegurança.


— Meu amor, você está meio gelada, parece nervosa. Fica calma. Me abraça. Tudo vai ficar bem. – Ele me abraçou com força, me envolveu de verdade em seus braços.


Por alguns minutos ele apenas me abraçou. Senti a paz acalmar meu corpo. Eu ainda estava de olhos fechados quando senti as mãos do Endry acariciarem meu rosto.


— Está mais calma agora? – ele me perguntou.


— Estou – respondi, ainda tímida.


Abri meus olhos, mas em poucos segundos fechei-os novamente. Logo senti o Endry me beijar de um jeito tão carinhoso que parecia ter me curado de todos os males.


Ele sorriu. Estava emocionado, a paixão saltava dos seus olhos. Empolgado, abriu sua mochila, pegou uma sacola e me entregou-a.


— O que é isso, Endry? – perguntei, curiosa.


— Abre o pacote.


Eu abri com pressa. Fiquei surpresa ao ver o que ele havia conseguido.


— É chocolate! Como você conseguiu? Custa uma fortuna! Quase o salário de um mês inteiro! – exclamei, surpresa.


— Eu dei um jeito. Esse momento não poderia passar em branco. Eu trouxe também sanduíches. Pão com queijo.


— Queijo? Você está brincando! – Fiquei ainda mais surpresa por saber que ele havia conseguido aqueles itens de luxo.


— Estou falando sério, Rosa Maria. Vamos fazer um piquenique. Está tudo aqui na minha mochila. Esse momento não poderia passar em branco.


— Confesso que agora que o nervoso passou, estou morrendo de fome. Já que você trouxe um banquete, quero comer logo – comentei, cheia de apetite.


— Ali tem um cantinho pra estender a toalha.


— Obrigada. Você é incrível. – Pulei no pescoço dele e o abracei de novo.


Naquele momento senti muita vontade dizer ao Endry “eu te amo”, mas me contive. No meu entendimento, ainda era muito cedo pra declarar amor a alguém que eu conhecia há apenas alguns meses. Até aquele momento ele ainda não havia dito que me amava. Mas só depois eu aprendi que algumas vezes o amor pode ser demonstrado com atitudes, e quase nunca com palavras. Eu deveria ter dito “Endry, eu te amo”, afinal o amor não precisa ser perfeito; é justamente o afeto imperfeito que demonstra que os seres amam e sentem com suas limitações, e essas limitações não significam que o sentimento não existe.


***


Passamos aquela tarde estudando na mesa do quarto. O Endry costumava me levar à sua casa depois da aula às sextas-feiras. Eram momentos de estudo e carinhos. Era maravilhoso admirar seu olhar compenetrado em meu semblante. Entre cálculos, calculadoras e cadernos havia espaço e tempo para afagos. Sempre que me lembro desses momentos, sinto vontade de voltar no tempo.


***


Naquele mês nosso namoro completava oito meses. Naquele dia, depois de estudar, ficamos lado a lado na cama e assistimos a um filme de ação e ficção científica no DVD. O Endry adorava filmes assim, com adrenalina. O primo dele costumava trazer os CDs piratas de suas andanças pelos países vizinhos.


Era costume eu me debruçar no colo do Endry. Ele afagava meus cabelos, me fazendo relaxar, e eu praticamente adormecia. Por uns instantes o mundo parecia estar em paz, mas aquele era só o princípio das dores e do caos.


Dormi mais do que o esperado e, ao acordar, percebi que já era noite, hora de ir pra minha casa. Meus pais haviam imposto limites e regras ao meu namoro. Eu ainda era muito jovem e eles tinham medo de que algo ruim me acontecesse naquele cenário caótico pelo qual meu país passava. Éramos católicos praticantes e eu uma jovem que procurava seguir os preceitos básicos da religião. Particularmente, eu acreditava em Deus e mantinha a esperança em milagres.


O Endry me levava de moto pra casa sempre que a conseguia emprestada do seu vizinho e amigo.


— Meu amor, que horas são? – perguntei, depois de abrir os olhos.


— Passa das oito. – Ele me beijou.


— O quê? Já está tarde. As ruas são perigosas durante a noite – eu disse, assustada pelo horário.


— Fica um pouco mais. Eu protejo você. – Ele sorriu.


— Você sabe que eu não posso. Tenho que ir pra casa, meus pais já devem estar preocupados. Nunca demorei tanto.


— Você gosta do meu carinho, sempre relaxa e pega no sono, então eu não quis te acordar – ele disse.


— Isso é verdade. Perto de você sinto como se o mundo estivesse em paz – afirmei, tentando demonstrar minha emoção.


— É uma pena. Eu gostaria que você ficasse mais tempo aqui comigo. Eu me sinto tão sozinho longe de você. Mas, já que tem que ir, então vamos. – Ele sorria enquanto falava.


Endry e eu tínhamos uma música preferida que marcou nosso namoro. Éramos fãs dos flashbacks anos 80 americanos e latinos. Essa música se tornou especial pelo fato de estar tocando em alto volume em um carro que passou perto de nós no dia em que ele me pediu em namoro. Era “Wishing on a Star”. Havia outras canções, como “Angel”, do Jon, e “Save Me Now”, do Andru. Essa última o Endry tocava para mim no violão. Ele me dizia: “Rosa Maria, o que foi que você fez com a minha mente? É como se eu estivesse aprisionado dentro da paixão que eu sinto por você.”


“Save Me Now” foi a nossa música.


***


Os dias passavam cada vez mais velozes, parecia não haver tempo nem pra respirar. A esperança de um país melhor se esvaziava à medida que a realidade cruel batia à nossa porta.


Aquela semana na faculdade foi sombria. Já fazia três dias que o Endry não aparecia e também não atendia às minhas chamadas, não respondia minhas mensagens. Fui à casa dele logo no segundo dia em que ele esteve ausente, mas lá não havia ninguém.


Algo estranho estava acontecendo. Pior: algo muito ruim sobreveio à família do rapaz que eu tanto amava, apesar de até aquele momento eu não ter pronunciado essa frase de confissão de amor. Eu sei, eu ainda era tão jovem, mas já tão comedida. Eu ainda não tinha coragem de declarar que o que eu sentia era amor. Na verdade, eu tinha medo de fazer uma afirmação tão profunda como essa e depois tudo mudar, e as circunstâncias me mostrarem que tudo era apenas paixão e afeto.


No quarto dia, logo depois da aula, fui novamente à casa dele, e enfim pude encontrar meu namorado prostrado na beira do quintal, de cabeça baixa. Vertendo lágrimas, ele pronunciava palavras de desespero e indignação. Eu me aproximei atordoada e sem entender o que se passava ali.


— Endry, o que aconteceu? Você está em prantos. Tentei falar com você por telefone, mas não consegui. Cheguei a vir até aqui, mas não encontrei ninguém. – Meu coração estava aflito.


Eu já estava agachada diante dele, que vertia as lágrimas mais angustiantes que vi na vida.


— Rosa Maria, aconteceu uma desgraça – Endry me disse.


— Que desgraça? – Meu coração já era pura angústia.


— Minha mãe teve um mal súbito, a ambulância a levou ao hospital, mas quando ela chegou lá não havia médicos pra atendê-la. O hospital está caindo aos pedaços, não há remédios nem recursos pra salvar a vida das pessoas. Minha mãe faleceu da maneira mais cruel. Nosso país está o caos.


Senti o impacto da triste notícia.


— Meu Deus! Eu lamento muito. Quando foi isso? Por que você não me contou nada? Eu poderia ter estado ao seu lado, te consolando. Que tragédia! – Lágrimas já caíam dos meus olhos.


— Aconteceu há quatro dias.


— Eu sinto muito, Endry.


— Rosa Maria, meu amor, tem algo que você precisa saber – ele disse, com voz trêmula e semblante sério.


— Diga logo. Já que é pra sofrer, então que seja logo.


— Meu pai e eu decidimos ir embora desse país. Vamos fugir daqui para bem longe. Partiremos para a Argentina em busca de uma vida melhor. Nós queremos dignidade. – Endry pronunciou essas palavras com aflição.


— Endry, eu sinto muito por tudo – eu disse, seguindo a falta de palavras que me acometia, e já sentindo um aperto no coração por sentir a iminência do fim.


— Eu fiquei desnorteado. A esperança de um futuro melhor não existe aqui nesse país. Me desculpe, meu amor, mas eu não posso te dar a vida que você merece. – Endry caiu novamente em prantos.


— Eu entendo, eu sei que tudo isso é um grande tormento em nossas vidas. Mais uma vez eu lamento por toda essa tragédia. – Eu o abracei ainda com mais força.


A distância e ausência iminentes me fizeram ter coragem de, naquele momento, olhar no fundo dos olhos dele e dizer:


— Endry, eu amo você. Sei que não é hora nem momento pra dizer isso, mas, diante das circunstâncias, essa é uma verdade que não posso mais guardar comigo. Eu te amo muito, você é o homem da minha vida.


Ele me olhou assustado, como se tivesse sido surpreendido por uma grande revelação.


— Eu fico feliz em ouvir isso. Saiba que eu amo você faz tempo. Só é terrível que tudo de bom que ainda poderíamos viver juntos esteja sendo destruído por um governo corrupto, por um sistema que nos mata aos poucos. – Endry estava soluçando, e seu rosto estava lavado de lágrimas.


— Meu amor, estou aqui do seu lado e posso sentir um pouco da sua dor. – Nos abraçamos fortemente, como se quiséssemos guardar um ao outro dentro de nós.


***


O Endry abandonou a universidade e se preparava para se despedir. Naquele mês, a inflação chegou ao ápice de 500 mil por cento, e os preços dos produtos não paravam de subir. Um simples sabonete custava quase todo o salário mínimo. Impossível ter tudo de que precisávamos.


Faltava um tempo até que eu completasse dezoito anos. Eu ainda era muito jovem, sonhava em construir uma carreira, em ser uma mulher com condições de garantir um futuro melhor aos meus pais, que estavam falidos. Mas certamente esse futuro não seria no meu país.


Meus pais estavam decididos que iríamos embora para os Estados Unidos da América dentro de no máximo um ano. Só precisávamos ajeitar algumas coisas. E então aconteceu o que eu temia: declarei amor por alguém com quem eu não poderia mais ficar, declarei amor pelo Endry, um rapaz que estava indo embora para sempre, e eu também iria pra bem longe.


***


O Endry ainda não sabia que eu e minha família também nos preparávamos para abandonar o país. Marcamos uma conversa no nosso lugar especial, na gruta, lugar onde ele havia me pedido em namoro meses antes. Aquele foi nosso último passeio e também uma despedida. Ele me buscou de moto e ficamos o tempo todo em silêncio até chegarmos à gruta. Meu coração estava acelerado, não de paixão, mas de angústia, a angústia do adeus.


— Rosa Maria, estou indo embora nessa semana – ele me disse com os olhos lacrimejantes. Estávamos de frente para a cachoeira.


Eu respirei fundo. Entendi que ele quis dizer que eu poderia ir embora com ele, entendi que no fundo ele esperava que eu dissesse que partiria com ele. Olhando profundamente em sua face, eu disse:


— Apesar de te amar muito, eu tenho apenas dezessete anos, ainda sou muito jovem, não posso ir embora com você. Meus pais não permitiriam e, além do mais, não foi isso que eu sempre desejei pra minha vida. Meu sonho é terminar meus estudos, ter uma carreira, amadurecer e depois sim noivar e me casar em paz, com dignidade, sem desespero.


— Já imaginei que você não fosse embora comigo e me sinto muito triste por isso. Você é a garota que eu amo. Mas nenhum de nós jamais pensou que essas coisas cruéis aconteceriam e bagunçariam nosso destino.


— Endry, tem uma coisa que eu preciso te contar.


— O que é?


— Meu pai decidiu que vamos embora para os Estados Unidos, dentro de no máximo um ano. Meus pais têm amigos lá que podem nos ajudar a ter uma vida digna. Eu não posso ficar longe dos meus pais. Tenho planos de construir uma vida melhor pra eles, seja como for, seja onde for. Eles precisam de mim – afirmei com dor no coração.


— Eu sei disso e jamais pediria que você largasse seus pais pra ir embora comigo, pra enfrentar um futuro totalmente incerto. Sei que você ainda é muito jovem e não está preparada pra se casar nem ter uma família. Eu não tenho muita coisa pra te oferecer agora. Entendo que você queira estudar e lutar por um futuro melhor. É sábia a decisão do seu pai de ir embora. Não há outra saída. Isso é horrível porque você e eu teremos que nos separar. Vou sofrer muito longe de você, Rosa Maria.


— Sim, é horrível, mas é a realidade, Endry. Teremos que viver pra sempre com essa dor que, por um lado, até passa, mas a dor da lembrança jamais se apaga.


— Meu amor, precisamos seguir em frente, lutar pelo melhor em nossas vidas, e isso tem um preço. Eu cansei de perder tudo por causa de tanta injustiça que acontece nesse país.


— Entendo a sua dor, sei bem como é. Minha família tinha tudo e de repente perdemos nossos bens, nossa casa, nossa dignidade – comentei. – Minha mãe, que era acostumada com pequenos luxos e uma vida agradável, se tornou uma mulher triste, depressiva. Meu pai desenvolveu problemas cardíacos de tanto passar nervoso, e eu já adquiri gastrite por passar muitas horas ou mesmo dias seguidos sem comer direito.


— Eu perdi minha mãe. E agora vou te perder também, Rosa Maria. Mas depois que esse pesadelo terminar, eu posso te encontrar de novo. Eu prometo. Eu vou até onde você estiver pra ficarmos juntos. – Ele acariciava meu rosto enquanto falava.


— Não, não prometa nada, Endry. Estaremos muito longe um do outro, as coisas podem mudar. Temos que terminar esse relacionamento sem juras e sem promessas. Podemos ser bons amigos à distância. – Minhas palavras foram ponderadas, e nesse momento eu já estava prestes a derramar minhas lágrimas.


Os olhos dele lacrimejaram. Endry não se conteve, começou a chorar e desabafou:


— Eu não queria que fosse assim, meu amor.


— Eu também não, meu amor. – Nos abraçamos e nos beijamos mais uma vez e pela última vez.


Naquele dia ele me deixou em casa e foi embora sem olhar para trás. Decidimos não nos vermos mais até sua partida.


Nunca imaginei que a despedida fosse doer tanto. Os dias seguintes foram os mais dolorosos. Continuei frequentando a universidade por mais alguns meses depois que Endry havia ido embora.


EMBARQUE


Há tempos o meu estojo de maquiagem já estava preparado para aquele momento. Tínhamos que aparentar saúde e alegria, nada de rostos pálidos nem desiludidos pela fome e miséria de um país. Éramos a família feliz indo visitar um velho amigo americano. Os vistos de turismo estavam devidamente carimbados em nossos passaportes, mas ainda seria necessário passar pela imigração ao desembarcarmos em Annapolis, capital de Maryland.


Éramos os sobreviventes do caos que se tornou a América do Sul. É claro que o meu país estava em uma situação pior do que todos os outros, afinal, quando as coisas são tão ruins a ponto das pessoas comerem os cachorros vira-latas das ruas, é sinal de que tudo se transformou em desumanidade e decadência.


O governo havia proibido a entrada de ajuda humanitária em meu país. Havia milhares de crianças desnutridas, morrendo de fome todos os dias, caídas nas esquinas ou no colo de suas mães.


***


Enfim meus pais e eu atravessamos o portão de embarque. Conforme meus pés seguiam em direção ao avião, meu coração batia mais forte. Entramos!


As poltronas eram confortáveis e ali dentro da aeronave havia certa paz. Meu estômago doía. Eu sentia muita fome, ainda não havia comido nada desde o momento em que havíamos abandonado nossa casa para tentar ter uma vida digna em outro país.


Depois de um tempo de voo, as comissárias de bordo começaram a servir a primeira refeição da classe econômica: sanduíches de carne, torradas, sucos, refrigerante e um doce. Meus olhos arregalaram-se quando olhei para a comida. Há muito tempo eu não sentia o gosto da carne na minha boca. Eu nem sabia mais o que era aquilo.


Confesso que minha vontade era de devorar o sanduíche apressadamente, mas eu não poderia fazer isso, eu tinha que manter a pose. O lanche foi servido na minha mesinha e eu o comi delicadamente, como todos que estavam ali. Naquele instante eu pude entender o quanto um simples sanduíche era precioso.


***


Como eu disse, já havia viajado para os Estados Unidos na minha infância. Tempos bons aqueles em que os cachorros eram apenas animais de estimação e não alimento.


Ainda havia algo que muito me preocupava. Embora meu pai não admitisse, foi depois da crise em nosso país que ele entrou em depressão e adquiriu doenças cardíacas. Meu pobre pai Santiago envelheceu anos em poucos meses.


NOVO MUNDO


Depois do desembarque em Annapolis, entramos na fila pra passar pela imigração. Fiquei nervosa, afinal ainda havia o risco de não nos deixarem entrar no país. Fomos conduzidos aos guichês e as autoridades nos entrevistaram.


Fiz todo o esforço pra manter meu semblante tranquilo, enquanto notei meus pais impecáveis em sua postura. O agente de imigração fez várias perguntas e depois de alguns minutos finalmente tivemos nossos passaportes carimbados com autorização pra ficarmos no país por até seis meses como turistas.


Fiz todo o possível para me manter tranquila, sem choros e sem desespero pela incerteza do futuro. Um peso enorme parecia ter saído das minhas costas. Enfim tínhamos uma chance de começar uma vida nova. Seguimos para a alfândega, onde retiramos nossas bagagens. Conforme eu caminhava até a saída do aeroporto, me sentia em outro mundo, um mundo onde as pessoas sorriam de verdade, um mundo onde havia paz, onde a chance de uma vida digna era real.


O David enviou um carro para nos buscar. O motorista era um sujeito meio sisudo e sem muita conversa. Gentilmente nos apresentamos e houve cumprimentos com apertos de mãos. Colocamos nossas malas no bagageiro. Meu coração acelerou por causa das coisas que meus olhos não podiam ver. Entramos no carro e meu pai sentou-se no banco da frente, ao lado do motorista com quem tentou puxar conversa, mas o sujeito era mesmo muito retraído.


Foram duas horas e quinze minutos até a chegada em Ocean City, uma cidade litorânea, pequena, pacata, com pouco mais de seis mil habitantes. Seriam apenas alguns dias na casa do David. Pelo que eu havia visto nas fotos, nosso anfitrião era um homem alto, forte, de cabelos castanhos, olhos azuis e pele clara. Pelas coisas que meu pai comentava, David era, ao que tudo indicava, solitário, um viúvo de quarenta e oito anos que ainda não havia tido sorte em suas tentativas de se casar novamente. Seus filhos, já adultos, moravam no Canadá, e também por isso sua solidão era completa.


A caminho da casa do nosso anfitrião, passamos pela praia, que era extensa, com restaurantes e lojas por toda a orla. Havia também um parque de diversões próximo ao calçadão. Naquela hora imaginei como seria linda a vista do alto da roda gigante colorida.


A brisa do mar tocou meu rosto e minha angústia diminuiu. Respirei fundo pra resgatar o otimismo, afinal eu estava me livrando do pior, da fome, da miséria.


A casa do David era enorme, branca, de dois andares, próxima a uma das praias. Eu ainda não sabia por quê, mas quando o carro parou em frente àquela casa, meu coração acelerou de novo. Era como se eu pressentisse as incertezas que estavam por vir.


Certamente o David escutou o barulho do carro, pois antes que eu e meus pais saíssemos do veículo, ele já estava de pé, em frente à porta, nos observando. Era fim de tarde, a brisa do mar voltou a tocar meu rosto e lá estávamos nós começando uma nova vida. Saímos do carro, tiramos nossas malas do bagageiro, David se aproximou e logo abraçou meu pai.


— Santiago, meu amigo, é um prazer recebê-lo aqui com sua família – David saudou-o.


— Obrigado, parceiro. Estamos felizes por nos receber. — Meu pai abraçou David como quem abraça um irmão.


— Sejam bem-vindas, senhora Doralis, Rosa Maria – ele disse, depois de abraçar meu pai.


Fiquei um pouco constrangida pela reação amistosa do David, pois eu sempre ouvira dizer que os americanos eram frios e não gostavam de abraçar nem de beijar o rosto das pessoas que mal ou pouco conheciam. Apenas estendi minha mão para cumprimentar o dono da casa. Já o havia visto de perto quando eu ainda era criança, mas não lembrava direito de suas feições vistas pessoalmente. David era um homem muito bonito, como nas fotos, o típico americano de cabelos quase loiros e de olhos azuis.


Já estava tudo preparado para a nossa chegada: haviam sido reservados dois quartos na casa, um para mim e outro para meus pais. Minha mãe ficou totalmente entregue à situação desde os primeiros momentos. Acho que, no fim, ela era a mais atormentada por tudo o que havíamos passado, por tudo o que havíamos perdido em nosso antigo país, onde famílias foram empobrecidas e separadas por uma política desumana. Logo ela estava no comando da cozinha, preparava as refeições e arrumava a casa do David. Ela realmente queria agradar o anfitrião que tão gentilmente nos abrigava.


Os primeiros dias foram os mais estranhos para mim. No começo não havia muito o que fazer, a não ser caminhar pela praia e visitar alguns pontos da cidade, mas uns cinco dias depois da nossa chegada o David conseguiu para minha mãe uma vaga de cozinheira na casa de uns veranistas. Seria só por alguns dias, enquanto eles estivessem na cidade, e então eu passei a auxiliá-la no serviço. Além de cozinhar, minha mãe e eu passamos também a fazer a limpeza da casa, assim conseguimos ganhar um pouco mais de dinheiro.


Meu pai, naqueles primeiros dias, fez alguns serviços de jardinagem. Era o que ele mais amava fazer, afinal nossa antiga empresa havia sido de paisagismo. Mas era na Califórnia, do outro lado do país, onde estavam os amigos latinos do David, que poderiam nos ajudar a nos estabelecermos de maneira definitiva.


***


Na primeira vez em que entrei em um supermercado americano me senti digna novamente. Parecia que eu havia entrado em outro mundo, um mundo melhor e muito diferente do de outrora, onde eu havia vivido. Nunca imaginei que eu me emocionaria só pelo fato de poder comprar comida e todas as coisas de que eu precisava por um preço justo. Parecia até que estava sonhando.


Eu passava pela fileira do chocolate e meus olhos se vislumbravam com as caixas de bombom feito de cacau puro. Coloquei uma caixa no carrinho e passei pelas barras de chocolate branco. Quando minha mão tocou em uma delas, não pude conter minha emoção. Já fazia tantos meses que eu não sabia o que era comer um doce. Chorei bastante enquanto contemplava a barra de chocolate em minhas mãos. Lembranças da minha doce infância me vieram à mente. Enfim, depois de tanto tempo, eu poderia comprar aquele doce novamente e me sentir um ser humano digno.


***


Ser auxiliar de cozinha e faxina, embora fora algo fora dos meus sonhos, era um trabalho digno com o qual consegui juntar um bom dinheiro, que era necessário, especialmente naquele primeiro momento. Ocean City era uma cidade aconchegante e pacata. No verão, ficava cheia de turistas vindos de todas as partes.


Evitei conversar com o David, pelo menos nos primeiros dias. Apenas meu pai tinha longas conversas com ele. Entretanto, depois da segunda semana, notei que David me olhava de um modo diferente. Parecia haver algo que ele quisesse me dizer, mas não tinha coragem. Eu fugia, sim, afinal eu era apenas uma garota de quase vinte anos em um país desconhecido, entre pessoas desconhecidas.


PRIMEIRO SORRISO


Minha mãe se tornou uma mulher ainda mais frustrada e estranha. Depois de alguns dias da nossa estada em Ocean City, ela parecia querer me jogar nos braços do David. Era o desespero, o medo de algum dia ter que voltar ao pesadelo em que vivíamos em nosso país de origem. Mas me jogar nos braços de um homem pelo qual eu não tinha o menor interesse amoroso não estava nos meus planos. Eu não poderia fazer isso, pois seria como me vender. Eu fugi do tormento pra ter uma vida digna. Algumas vizinhas em meu antigo país foram obrigadas a se vender por um dólar a hora para que seus filhos não morressem de fome.


Lá estava eu, em um mundo estranho, vivendo uma situação que aparentemente seria a minha salvação.


***


Minha mãe e eu acordávamos às seis da manhã e às sete seguíamos para o trabalho. Mas naquele dia fui surpreendida por uma dor de cabeça atípica que me deteve na cama por mais algumas horas.


O relógio marcava nove da manhã quando a dor passou e enfim me levantei. Tomei um banho, me arrumei e segui para a cozinha a fim de preparar algo para comer. Meu estômago já doía de fome, eu não deveria ter passado da hora de me alimentar.


Desci as escadas depressa. Não via a hora de chegar à cozinha e preparar minha panqueca preferida, típica do meu país, as cachapas, feitas de farinha de milho.


A casa parecia estar vazia, não havia ouvido nenhum barulho até aquele momento. Peguei a farinha de milho, o açúcar, a água, a tigela e a panela. De repente ouvi passos na escada. Conforme o som se aproximava da cozinha, olhei para trás. Então pude ver o David entrar.


— Bom dia, senhorita Rosa Maria – ele me disse, indo em direção à geladeira. David pegou o leite para preparar seus sucrilhos.


— Bom dia. Pensei que não havia ninguém em casa.


— Meu horário na universidade mudou. Agora irei todas as tardes e em algumas noites.


— Entendo.


— E você, não deveria estar no trabalho com sua mãe? – Ele pareceu surpreso por me encontrar ali.


— Deveria, mas acordei com uma dor de cabeça muito forte. Precisei descansar mais um pouco.


— Já está melhor? Precisa de alguma coisa?


— Estou melhor sim. Já tomei um comprimidinho pra dor. Eu agradeço a sua preocupação. Acordei com fome e agora estou aqui, preparando minhas panquecas preferidas.


— Panquecas?


— Sim. Mas não são panquecas americanas – respondi.


— Não?


— São panquecas típicas do meu país, feitas com farinha de milho. Nós as chamamos de cachapas.


— Cachapas! Pelo nome, parecem ser boas.


— São uma delícia. Vai querer provar?


— Com certeza. Você está tão empolgada fazendo essas panquecas que me deu até vontade experimentá-las.


— Farei umas a mais para que prove. Depois de comer, vou seguir para o trabalho.


David sorriu para mim, mas não foi um sorriso qualquer. Ele parecia perceber algo em meu semblante, algo que o agradava.


Enquanto eu fazia as panquecas, conversamos sobre as comidas típicas da minha terra natal. Fiz alguns comentários sobre a culinária americana e sobre tudo do que eu mais havia gostado desde que havia chegado a Ocean City.


Foi naquele instante que eu comecei a enxergar o David de outra forma, não só como o homem mais velho que estava ajudando a minha família, mas também como um amigo verdadeiro.


Depois de prontas, eu recheei as panquecas com geleia e pasta de amendoim.


— É mesmo uma delícia essa panqueca de milho. Quero aprender a fazer – disse David, satisfeito. – Dia desses sua mãe fez um almoço delicioso. Há tempos eu não desfrutava de uma comidinha caseira como essas que vocês fazem. Eu estava almoçando em restaurantes ou comendo comida pronta e enlatados.


— Eu posso te passar a receita sim, mas é bem simples de fazer – respondi sorrindo, enquanto o observava degustar a panqueca.



Jamila Mafra



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